A economia, o desenvolvimento e a esquerda socialista: um caminho estratégico?



A esquerda se depara mais uma vez com a questão de como agir com a economia para apresentar seu projeto de desenvolvimento e ao mesmo tempo de superação do capitalismo. Ou, de como avançar em seu projeto de sociedade, em relação às questões de produção, financiamento, distribuição e preservação dos recursos necessários à sobrevivência humana e do planeta. Tanto para a pauta de “um outro mundo possível” como, mais objetivamente, para o governo Lula, onde esta questão se coloca de imediato, os setores populares e a esquerda socialista estão convocados a atuarem propositivamente para disputar a construção de uma ordem e de uma política econômica que dêem sustentação a um projeto anti-capitalista – do curto ao longo prazo.

Abordar a economia, não significa necessariamente se restringir a macroeconomia – a política de juros ou monetária, a inflação ou ao câmbio, ao PIB ou a renda nacional. Estes temas são fundamentais, sobretudo quando se é governo, assim como também as reformas tributária e previdenciária são para o Brasil ou o papel do Estado e seu marco legal o são para o modo de produção.

No entanto, assim como a abordagem estritamente econômica não é suficiente para uma estratégia de desenvolvimento, também existem outras abordagens econômicas definidoras do desenvolvimento que uma sociedade almeja. Abordagens mais próximas da base produtiva devem responder sobre o que e como produzir, quem decide, controla e distribui os produtos e a renda da sociedade. Portanto, um projeto econômico d@s trabalhador@s deve também compreender o espaço das empresas, dos produtores, da organização do trabalho, dos serviços de apoio a produção, da logística e da distribuição. Ou seja, as abordagens da micro e da meso economia, que interferem diretamente nas estratégias de desenvolvimento.

Preliminarmente, é necessário desmistificar a economia. Compreendê-la como relações mais próximas do nosso cotidiano, ou mesmo, entender que esta não é sinônimo de capitalismo. Em que pese a Ciência Econômica ter sido desenvolvida sob, e para, o capitalismo, hegemonizada pela visão liberal de mundo e sob o paradigma cartesiano e mecanicista, ela não pode ser entendida sob estes limites, pois as ações econômicas têm acompanhado a evolução das sociedades há milhares de anos.

A economia, em nossa concepção, nada mais é do que a forma como uma sociedade se organiza para produzir e distribuir o necessário para sua sobrevivência e de suas gerações futuras, de forma sustentada no planeta e no tempo. Quando nos referimos à sociedade, compreendemos que esta está em permanente disputa, e que suas opções são fruto de dada correlação de forças. Portanto, a economia não é isenta de valores, ao contrário do que deixam supor as teorias que predominam na ciência econômica. Os valores que fundam a economia são estabelecidos pela cultura, pelo marco jurídico e pela correlação de forças entre quem produz e quem controla os meios, a produção e a distribuição das riquezas.

Um outro mundo possível requer novas abordagens para a economia, menos economicista e que incorpore os valores do novo mundo que se quer construir. Por isso a importância de se debruçar sobre os fundamentos de nossa economia, ou seja, sobre seu modo e sobre as suas relações de produção: o quê, como, para quê e para quem se produz e se distribui; a que custo e a que benefício para as culturas e para o planeta.

Enfrentar o debate sobre a economia sempre foi um grande desafio para a esquerda. Talvez porque ela seja o âmago da hegemonia capitalista. Assim, ou este debate objetivo sistematicamente foi jogado para depois da revolução (entendida como ruptura, tomada do poder) ou foi feito somente a partir do Estado e de suas limitadas esferas de poder conquistadas pela esquerda sob o capitalismo.

Em ambos os movimentos, criou-se uma limitada dicotomia entre estatal e privado. Aqui reside uma equivocada compreensão estratégica: superestima-se o poder do Estado e subestima-se o poder econômico. É como se o poder da burguesia estivesse no seu controle sobre o Estado e não no seu controle dos meios de produção e distribuição. Ora, para o modo de produção, o Estado nada mais é que o regulador que garante o poder da classe hegemônica.

Por outro lado, quando a estatização não se coloca como alternativa para a esquerda, então, esta deixa para a burguesia gerir a economia e o desenvolvimento. E aos trabalhador@s compete disputar ou gerir ganhos sociais. O resultado é outra falsa dicotomia: desenvolvimento econômico versus social. Ora, tampouco existe desenvolvimento econômico sem consequências sociais, como não existem ganhos sociais sem financiamento econômico.

Com o PT não foi diferente. Aliás, talvez isto ajude a entender porque, nas alianças do governo Lula, coube a burguesia nacional industrial e agrária e ao capital financeiro internacional, a condução de parte significativa da política econômica.

Enfim, procuramos aqui construir a idéia de que a economia é um espaço de poder fundamental na sociedade, e enquanto tal, deve ser disputado pelos socialistas. O espaço econômico como frente de intervenção, pode propiciar a ampliação de espaços sociais e políticos, que por sua vez, acumulam forças para uma transição socialista.

Isto é válido já para o próprio governo Lula, pois para realizar as verdadeiras reformas necessárias para @s trabalhador@s – que até agora não entraram em pauta – haverão profundas resistências dos setores dominantes, e a capacidade para executá-las dependerá da amplitude do apoio popular que se construir. Acreditamos, que a transição até agora anunciada pelo nosso governo, trata-se somente de uma pré transição, do momento de acumular forças para uma verdadeira transição.

É esta a contribuição – em nosso entendimento inovadora para a esquerda – que o movimento da Economia Popular Solidária – EPS -, pautado pela autogestão nas unidades e nas relações econômicas, está trazendo para o movimento anti-globalização, para os governos populares, para os trabalhador@s e socialistas de todo mundo.

PROJETO DE SOCIEDADE, INCLUSIVE ECONÔMICO

Apresentamos algumas questões para debate que podem vir a compor a agenda da esquerda socialista do próximo período. O objetivo está em identificar qual o potencial da EPS para acumular forças em um projeto de sociedade anti-capitalista, um projeto de construção de uma democracia socialista.

Para contribuir nesta discussão, apresentamos alguns pressupostos: i) não há projeto anti-capitalista coerente que não apresente alternativas para as relações econômicas de produção e distribuição; ii) a base da economia pode ser espaço de disputa que acumule para a luta dos trabalhador@s, nas relações culturais, sociais, políticas e de poder econômico; iii) o movimento da economia popular solidária, tem um grande potencial de contribuir para a emergência de um novo sujeito social que puxe a correlação de forças para um projeto da classe trabalhadora: os trabalhador@s autogestionários, ou toda a população que se organiza e trabalha sem explorar ou ser explorado pelo capital.

A EPS se propõe a contribuir para um projeto integral de sociedade. Inova ao sobrepor o paradigma da cooperação sobre o da competição e da satisfação humana sobre o da acumulação, inclusive na esfera de produção e reprodução material: na economia. Refutamos qualquer proposição que trate o tema desenvolvimento limitado a relações puramente econômicas. Não existem relações econômicas que não sejam, ou tenham frutos nas relações sociais, culturais e políticas. O social e o econômico são duas faces de uma mesma moeda.

Portanto, a EPS oferece elementos para um projeto d@s trabalhador@s nas mais diversas áreas de disputa. Vejamos duas abordagens amplas.

O Orçamento Participativo nos traz a bandeira da democracia direta, da democratização e ampliação dos espaços públicos, estatais e da renda pública. Isto aponta para uma forma de autogestão das comunidades. Ora, e a renda tida como privada, não é suscetível de democratização? Não devem @s trabalhador@s avançar na autogestão da produção e distribuição do produto e da renda? A Cidade das Cidades no III Acampamento Intercontinental da Juventude foi emblemático ao inserir na pauta da juventude a forma de gestão do espaço público local. Urbanismo, segurança, resíduos, abastecimento, comércio, saúde, gestão ambiental, todos são temas de responsabilidade social que, via de regra, são subordinados a interesses econômicos privados, ou definidos burocraticamente por representantes do povo.

A discussão da transgenia, dos OGM: o primeiro debate colocado é sobre suas indefinidas conseqüências sobre a saúde humana e do planeta. Mas e se, hipoteticamente, este debate se resolver comprovando-se que não há riscos à saúde? Restará a questão do seu uso econômico. Ou seja, quem terá a propriedade dos OGMs? Serão utilizados para atender as necessidades da humanidade ou para gerar lucros e poder em algumas multinacionais? Então talvez tenhamos que forçar o debate para o caráter público, universal da vida e de tudo o que é necessário para a reprodução do planeta, contrapondo-se ao paradigma competitivo liberal que propõe a privatização absoluta, inclusive dos recursos naturais. Podemos generalizar esta discussão para a medicina, a tecnologia, a cultura ou para a sustentabilidade do planeta. Deverão estas estar a serviço do capital ou do bem comum?

Vejamos. De alguma forma, todos os bens, serviços, conhecimentos ou espaços, precisam ser produzidos, reproduzidos ou mantidos. Isto pressupõe uma relação econômica. A sociedade é quem deve optar sobre sua forma de produção e distribuição. Poderá ser privada, financiada pelo capital, orientada pelo mercado, pela competição e pelo lucro. Poderá ser estatal, financiada socialmente, centralmente planificada, com acesso universal. Ou poderá ainda, ser simplesmente pública, financiada com renda social ou dos próprios trabalhador@s, orientada para o bem comum, para a sobrevivência d@s trabalhador@s envolvid@s e da sociedade e auto gerida por estes próprios.

Nos parece, que a contribuição da EPS é absolutamente relevante para um projeto de transição dirigido pela classe trabalhadora. Seja pela sua capacidade de ganhar consciências para um paradigma de mundo não competitivo, seja para fazer frente ao enfraquecimento dos Estados, fruto tanto das políticas neoliberais como do desastre dos regimes totalitários do socialismo burocrático.

? MOVIMENTO SOCIAL E SUJEITO POLÍTICO: O PAPEL DOS TRABALHADOR@S E DAS ONG’S

Organizar um sujeito político que fortaleça a luta dos trabalhador@s. Talvez seja este o grande desafio posto à EPS. O aumento significativo do trabalho informal, do sub emprego, do trabalho autônomo, do trabalho não assalariado, remete para o desafio de sua organização política, que há muito extrapola os limites da organização sindical. Por outro lado, a existência contraditória de relações não-capitalistas, no interior do próprio sistema, é o que alimenta a perspectiva de um projeto de classe fundado na autogestão das unidades produtivas e dos espaços sociais. Tema difícil para a esquerda, mas é o que vem sendo construído pelas dezenas de organizações da economia solidária e pelos seus milhares de trabalhador@s.

Além de romper com o cooperativismo tradicional, subordinado ao capitalismo , o desafio posto aos socialistas é consolidar o protagonismo dos trabalhador@s. Até agora, é unânime em se reconhecer a forte presença de formuladores da EPS e de apoiadores de empreendimentos autogestionários. Da mesma forma, se reconhece a ausência de expressivas organizações políticas autônomas destes trabalhador@s.

Nos parece que há dois setores de trabalhador@s da EPS. Um que trabalha diretamente nas diversas formas de empreendimentos popular solidários. Outro, que trabalha a partir de ONG’s, universidades, entidades sindicais ou governos. Pelo menos duas questões os distinguem. O primeiro (setor I), depende para sobreviver – materialmente – estritamente da produção e de sua troca. Portanto, está subordinado à dinâmica econômica vigente e depende das relações de cooperação solidárias. Já o segundo (setor II), não depende diretamente das relações de produção, pois tem sua renda financiada pelo setor público, por captações diversas das ONG’s, ou, alguns poucos casos, financiados pelos própri@s trabalhador@s. A outra questão para compreender os dois setores é a perspectiva política de cada um. É nítido que coube ao setor II a elaboração de um projeto político a partir da EPS. Já os trabalhador@s do setor I pouco acumularam em termos de projeto político, mas tem uma necessidade mais que objetiva: sua sobrevivência, pois em sua maioria, procuram relações solidárias, porque foram excluídos da condição de assalariados.

Compreendemos que não há uma contradição entre estes trabalhador@s. Fazem parte de uma mesma classe, com uma certa divisão do trabalho. O que os unifica é um projeto com um lugar comum para todos. O que os distingue é a incerteza e a renda que percebem.

No entanto, destacamos que o crescimento da participação política direta dos trabalhador@s do setor I é decisiva para consolidar o movimento social da EPS. Somente estes darão o peso político necessário para este setor se constituir num protagonista do debate nacional e assim acumular para um projeto político alternativo para a sociedade. O importante está em constatar que há um potencial latente, com a emergência de diversos companheiros e companheiras que já conseguem se desvencilhar do exclusivo desafio cotidiano de gerar sua própria renda e entrar no debate sobre seu espaço na sociedade. Transformar este potencial em movimento real ainda é um desafio colocado. As diversas redes e fóruns de economia solidária bem como organizações como a Anteag ou Centrais Autogestionárias têm um papel central a cumprir. A construção do Forum Brasileiro de Economia Solidária, de fóruns regionais e estaduais, poderá exercer o papel catalizador da identidade de classe que culmine num o movimento social, cultural, político e econômico da EPS.

O movimento em todo país, com plenárias regionais, estaduais e nacional de construção do FBES demonstrará a real capacidade de mobilização deste setor. Com certeza, será um processo recheado de contradições e compreenções diferenciadas. Seu êxito, será evidenciado pela capacidade de estabelecer pautas comuns que mobilizem trabalhador@s de todo país. Sua independência em relação ao governo também será fundamental. Somente uma auto afirmação destes sujeitos frente aos governos, aos empresários e ao setor financeiro é que o credenciará a afirmar um projeto econômico alternativo ao país. Não entendemos como contraditória a participação de esferas governamentais nestes fóruns, desde que, a pauta do movimento não esteja subordinada aos limites dos governos. Caberá aos governos trabalhar a contradição entre a pauta do movimento social e o papel do Estado frente a propriedade privada do lucro e dos meios de produção.

Fortalecer este processo é uma tarefa central. Diversos setores sociais tem se deparado com a necessidade de incluir a geração de trabalho e renda como forma de organização, mobilização e conquista de cidadania para os trabalhador@s. Isto revela o potencial deste tema na pauta de diversos movimento sociais: movimento popular, movimento de luta pela moradia, juventude, movimento agrário (rompendo com o cooperativismo tradicional), remanescentes de quilombos, movimento sindical, ambientalistas, até intervenções na saúde popular e serviço social. A luta econômica, por motivos óbvios, está presente em toda luta dos trabalhador@s. O desafio posto é canalizar este potencial para um projeto emancipatório.

? ESTRATÉGIAS ECONÔMICAS DE BASE POPULAR SOLIDÁRIA

O movimento social e político da EPS só se consolidará se se assentar em bases econômicas reais. O potencial de mobilização social aqui identificado será confirmado na medida em que seus sujeitos ali encontrarem uma perspectiva de sobrevivência. Portanto, somente a sustentabilidade econômica, a oportunidade de trabalho e de obtenção de renda é que impulsionará a organização destes setores populares e definirá sua incidência na disputa de rumos da sociedade. Este protagonismo popular somente será capaz de disputar os rumos da sociedade se construir, com outros setores populares, um projeto global alternativo ao capitalismo. A EPS pode embasar um projeto de desenvolvimento capaz de conciliar o resultado econômico com a perspectiva ecológica de sustentabilidade planetária, com o resgate e preservação de culturas, inclusive econômicas, massacradas pelo mercado capitalista, como a indígena e a africana.

Para efeitos de registro e reflexão, pois aqui ainda não abordaremos, há que se tratar especificamente do tema agrário, principalmente da produção familiar, não assentada no assalariamento nem em investimentos capitalistas. Este segmento possui muitas especificidades, principalmente pelo seu grau de subordinação estrutural a dinâmica capitalista mundial. Mas entendemos também, que por suas características pode contribuir fortemente para implantarmos novas estratégias econômicas.

Apontaremos aqui, de forma preliminar, quatro estratégias que, se combinadas, podem consolidar um desenvolvimento econômico popular solidário.

? Constituir uma demanda efetiva – Uma atividade econômica produtiva só se completa se conseguir realizar sua produção. Ou seja, se encontrar quem adquira o produto mediante uma remuneração justa . Diversas estratégias podem ser perseguidas: construir junto a toda população o emblema do consumo solidário, justo, ecológico ou político, que além da conseqüência econômica almejada poderá ser um símbolo político de envolvimento de toda a sociedade; disputar o poder de compra do Estado, fazendo uma inflexão para que os gastos com todas as políticas públicas priorizem a aquisição de produtos da EPS; vincular a produção da EPS aos programas de caráter redistributivo como o Fome Zero; inserir-se no comércio externo através dos fluxos de comércio justo já existentes; impor aos setores privados tradicionais, cotas de aquisição da economia popular, o que poderá ser feito como contrapartidas dos benefícios concedidos as empresas capitalistas (fiscais, creditícios, financiamentos, execução de obras públicas, vendas ao Estado). Resta ressaltar que na base da EPS está a geração e distribuição de renda, o que por si só, poderá levar inúmeros trabalhador@s a se inserir e ativar este circuito dinâmico.

? Desenvolver um Sistema de Financiamento da Produção Popular – Trata-se de viabilizar a acumulação primitiva da EPS. Historicamente o Estado tem cumprido a função de garantir a propriedade dos meios de produção, é claro, que sob o controle das classes dominantes. Assim foi da colonização brasileira com a distribuição das sesmarias – base do latifúndio – até as recentes privatizações neoliberais mediante financiamento público – veja-se o caso da americana AES em vias de calote ao BNDES.

Desta forma, é absolutamente legítimo que os setores populares reivindiquem o acesso aos meios de produção, seja mediante financiamento público direto, seja através de mecanismos institucionais que viabilizem a formação de fundos solidários. Para tanto, há que se ampliar os mecanismos de financiamento ao trabalho do sistema financeiro público e privado. O conceito de risco bancário pode ser entendido – de forma plenamente responsável – como um componente necessário ao desenvolvimento.

A questão é de quanto e quais riscos correr. É plenamente compatível aos agentes financeiros de fomento, especialmente o BNDES, delimitar recursos a serem alocados para financiar a produção popular, reduzindo as garantias reais exigidas. Aos bancos é possível impor a necessidade de aplicar recursos na produção da EPS, da mesma forma que o Banco Central impõe a aplicação em crédito rural ou em recolhimentos compulsórios. Nossa experiência recente na gestão de estruturas estatais já nos permite identificar onde os avanços podem ser imediatos. O crédito cooperativo é outra forma de estimular o financiamento popular. Atualizar a legislação, criar mecanismos para o seu desenvolvimento e estímulo a adesão da população são maneiras de formar fundos com recursos privados – das famílias. No entanto, tais recursos devem ser estritamente dirigidos ao financiamento da produção do consumo popular. Não é compatível que o cooperativismo de crédito assuma a lógica bancária da mera rentabilidade para os aplicadores, pois numa perspectiva popular, o sistema financeiro deve ser entendido como meio e não como finalidade na economia. Podemos ainda citar a criação de fundos públicos estaduais ou municipais, ou mesmo, estímulos fiscais para a produção popular que promova o re investimento na produção. Cabe também, explorar melhor o potencial das moedas solidárias ou propostas como os circuitos de capital líquido, bem como dos bancos éticos e das instituições de microcrédito.

? Constituir um Sistema de Promoção e Inovação para EPS – A EPS precisa produzir bem e de forma eficiente . É preciso constituir um sistema de apoio e promoção dos empreendimentos populares, que promova a sua permanente qualificação, inovação, integração e indução de dinâmicas locais e regionais de desenvolvimento. O processo produtivo não está limitado ao empreendimento. Uma estratégia de desenvolvimento baseada na EPS deve pressupor a constituição de instrumentos de agregação de valor, externos aos empreendimentos. Capacitação técnica e gerencial, pesquisas e análises de mercado, desenvolvimento e difusão de tecnologias, promoção de cooperação e integração produtiva, pesquisas e informações econômicas são imprescindíveis para atividade econômica. Uma estratégia de desenvolvimento deve também compreender as potencialidades locais e fortalecer as economias regionais integrando-as e inserindo-as de forma soberana na economia mundial. É na esfera local que a população interage diretamente podendo exercitar o controle político, social e econômico. Portanto, fortalecer as economias locais com instrumentos que agreguem valor a produção, por meio da cooperação gerando ganhos de escala e de escopo, contribuirá de forma decisiva para a dinâmica da economia popular solidária. Além de aproveitar as potencialidades locais, a produção de base popular deve constituir instrumentos que liguem e fortaleçam os empreendimentos mutuamente, construindo uma divisão do trabalho cooperada e não subordinada. Vejamos algumas formas.

Constituir agências de promoção do comércio solidário irá capacitar os empreendimentos a definir melhores estratégias comerciais, fortalecer marcas, acessar a licitações. Assessorias técnicas como designers – imprescindíveis para ramos como vestuário, calçados ou moveleiro – podem ser contratados coletivamente. Assessoria contábil e de custos pode ser especializada para atender aos trabalhador@s auto gestionári@s, já que requer metodologia diferenciada para democratizar as informações. Compras e vendas podem ser feitas em conjuntos pelos empreendimentos de forma a ganhar poder frente aos mercados.

Enfim, um grande número de instrumentos com base em redes de cooperação podem ser constituídos para fortalecer a EPS e esta como estratégia para o desenvolvimento. Este papel já vem sendo experimentado em parte por diversas ONG’s e Incubadoras, as quais, atuando sem fins lucrativos e sob a proposta da EPS, demonstram um potencial de agregar trabalho e portanto valor à produção solidária. É a interação do que definimos como trabalhador@s do Setor I e Setor II, agregando valor em torno do mesmo produto. No entanto, é essencial que tais instrumentos sejam enraizados localmente e democratizados ao conjunto de produtores. Esta interação podemos chamar de redes de cooperação solidárias, as quais podem reorganizar horizontalmente a divisão do trabalho, eliminando a fragmentação e a subordinação tanto do trabalho braçal ao intelectual, como dos empreendimentos à setores com maior poder de mercado, típicos das relações capitalistas.

? Incorporar Valores Emergentes – Nossa quarta estratégia visa incorporar diversos aspectos que transcendem as relações econômicas mas não são menos importantes para um projeto de desenvolvimento popular.

O primeiro é a abordagem ecológica, não só restrita a preservação da natureza, mas que compreende o planeta como um ser vivo, de recursos finitos, que precisa manter seu equilíbrio com as relações sociais e econômicas produzidas pela humanidade. A EPS pode romper tanto com a lógica economicista do crescimento ilimitado como da subordinação de todo e qualquer interesse ao lucro e à acumulação. Somente esta inversão da lógica hegemônica – nada simples de romper – é que será capaz de desenvolver fontes de energia renováveis e não agressivas ao ecossistema. As tecnologias disponíveis já poderiam há pelo menos duas décadas difundir a energia solar. É claro que são necessários grandes investimentos para massificá-la, mas não nos parece que esta limitação tenha sido maior do que a impossibilidade do capital cobrar e lucrar com esta fonte energética abundante e de acesso universal. De igual forma uma perspectiva de economia popular pode romper com o modelo do consumismo desenfreado, que ao invés de satisfazer necessidades humanas, como o marketing capitalista procura nos convencer, está a serviço da acumulação capitalista e é altamente consumidor de recursos naturais e poluidor do meio ambiente.

O segundo valor que chamamos de emergente é a preservação do que resta das culturas oprimidas, sobretudo pelo mercado concorrencial. Os valores de mundo das comunidades indígenas americanas ou mesmo as africanas, brutalmente emigradas para nosso continente, expressam relações sociais, com a natureza e com a produção para a satisfação das suas necessidades, muito distintas dos valores ocidentais, principalmente daqueles estimuladas e valorizados sob as relações capitalistas. Os valores daquelas culturas são muito mais compatíveis e integrados a preservação do planeta bem como promotores da solidariedade e cooperação social, do que os valores que lhes foram impostos e em nome dos quais aquelas culturas foram oprimidas e dizimadas. Com certeza estas culturas tem muito a colaborar com um projeto econômico e social popular solidário. Desta forma, não se trata somente de resgatar os espaços territoriais e as relações culturais entre o que resta das tribos indígenas e dos remanescentes de quilombos. Trata-se sim, de compartilhar com estes os avanços sociais e tecnológicos conquistados pela nossa cultura mas a eles negados. Como também, trata-se de incorporarmos a sabedoria que tais povos desenvolveram ao longo de sua história e que tanta falta fazem ao mundo ocidentalizado.

O terceiro valor que destacamos é a perspectiva feminista e de democracia de gênero. Não é estranho que o capitalismo tenha se apoiado na estrutura patriarcal para intensificar seu processo de acumulação e de exploração do trabalho. A subjugação das mulheres ao exército de reserva, dada a ‘menor capacidade’ destas para contribuir com a força física requerida pelo capitalismo industrial, encontrou amparo na já existente subordinação cultural e familiar. A relação com o mercado de trabalho só começa a ser rompida quando as habilidades femininas passam a ser requeridas pelo sistema. De igual forma, a não incorporação do trabalho doméstico – responsável pela reprodução da força de trabalho – as medidas do PIB e da renda nacional, desprezam diretamente o papel que as mulheres tem exercido na reprodução social e econômica. A EPS deve e pode resgatar esta dívida histórica, não só por uma questão de democracia de gênero, mas porque a dimensão feminina tem muito efetivamente a contribuir com um projeto de economia popular solidário. Para tanto, fazemo-nos valer um pouco da milenar cultura chinesa. Seus arquetípicos de atividade yin e yang, nos servem para compreender o quanto as relações capitalistas trazem de valores relacionados ao masculino. Ao Yang estão associados os seguintes valores e atitudes culturais: masculino, expansivo, agressivo, competitivo, racional e analítico. Já ao Yin, associam-se o feminino, contrátil, receptivo, cooperativo, intuitivo e sintético. Semelhantes valores e comportamentos associados ao masculino e ao feminino são confirmados por abordagens da psicologia. Bem, que façamos uma economia mais Yin.

O PAPEL DA POLÍTICA PÚBLICA PARA A EPS

Cria-se em nosso país as condições para uma política pública nacional de fortalecimento da economia dos setores populares. A Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES – é uma grande conquista do movimento e um importante instrumento para o governo Lula avançar na relação com os trabalhador@s. Um diálogo permanente do governo, através da SENAES, com os setores organizados da EPS, fortalecerá a mesma social e politicamente, o que por sua vez, fortalecerá o projeto político dos trabalhador@s brasileiros.

Cabe ao Estado – sob controle dos trabalhador@s – criar condições para o fortalecimento e ampliação dos espaços econômicos populares solidários. Marco legal, financiamento, instrumentos de capacitação, apoio e inovação, redes de apoio e cooperação econômica são imprescindíveis para a sustentabilidade da EPS e devem ser viabilizados com o apoio do Estado. No entanto, o essencial é “empoderar” a sociedade, ou seja, os espaços econômicos solidários devem ser controlados pela própria sociedade, em alguma medida, até em cooperação com o Estado, mas sem dependência deste. Tal caráter efetivamente público, pode ser viabilizado, pelo apoio dos programas governamentais a iniciativas que envolvam empreendimentos solidários organizados em redes com ONG’s, sindicatos, universidades e todas as organizações locais de fomento que se proponham a construir projetos locais e regionais de desenvolvimento baseados na autogestão. É mister, o apoio a “projetos” que tenham a maior amplitude possível, e não restringir-se ao apoio a esta ou aquela entidade.

As estratégias arroladas acima serão mais ou menos viáveis e terão definidas sua potência, de acordo com a capacidade dos trabalhador@s incidirem nos instrumentos públicos e na modificação da relação Estado/economia. Compreendemos que as experiências anteriores, como no governo gaúcho, podem facilmente serem superadas positivamente, pois poderemos nos valer tanto da experiência de nossos acertos e erros, da potência dos instrumentos federais, como principalmente, da emergência política que conquistamos para a EPS no governo Lula. Por fim, pontuaremos alguns elementos que julgamos fundantes de uma política pública federal de EPS, os quais poderão ser desdobrados em projetos a partir das estruturas e orçamentos a serem disponibilizados:

? Criar um Marco Legal que reconheça a economia popular solidária. Isto é base para modificar as estruturas de financiamento, incidência tributária e tratamento diferenciado no conjunto das políticas governamentais, da capacitação profissional, exportações às compras governamentais.

? Subsidiar a constituição de instrumentos (capacitação, inovação, comercialização financiamento) de apoio à produção e comercialização solidária de forma a conferir ganhos de escala e escopo à produção organizada em redes de colaboração.

? Estimular projetos integrados, que concebam sistemas de EPS, formando e integrando cadeias e esferas produtivas de acordo com as características econômicas e culturais de cada região do país, de forma a evitar que empreendimentos isoladamente entrem na fatal competição do mercado.

? Integrar transversalmente as diversas políticas públicas, desde a Educação, Esporte e Cultura, inserindo conceitos de cooperação nos currículos, até o Desenvolvimento Agrário e a Ciência e Tecnologia, priorizando o desenvolvimento, a apropriação e a aplicação pública, popular dos novos conhecimentos.

? Criar condições para relações internacionais dos trabalhador@s da EPS e disputar os objetivos de uma inserção econômica internacional. O Comércio Justo talvez seja a área com maior volume econômico de relações solidárias. Cumpre um papel no comércio mundial de lançar novas paradigmas para relações econômicas norte-sul e estreitar relações sul-sul.

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